O reflexo

Um dia notei que tinha perdido o reflexo. Olhei-me ao espelho para aprumar o colarinho da camisa e a minha imagem gémea não apareceu, esticando convictamente com ambas as mãos o tecido que cercava o meu pescoço, Não é possível, devo estar ainda a dormir, esfreguei os olhos com força, talvez ela estivesse presa debaixo das minhas pálpebras e precisasse de ajuda para voltar para o outro lado do vidro, sem sucesso, o espelho continuava deserto, sem vivalma para repetir os movimentos dos meus dedos, dos meus olhos, dos meus lábios, senti-me vazia, O que me aconteceu? Fugi de mim e deixei-me oca por dentro? Olhei com atenção. Uns contornos com forma humana surgiam muito ténues, afinal estava lá alguém, muitos alguens até, vi a minha mãe com o seu sorriso doce, vi o meu pai com olhar autoritário, vi a Mariana, o João, a Mara e o Pedro com um amor escrito no peito, vi-me desconstruída nos pedaços que cada um deles ofereceu para criar aquela que agora estica com ambas as mãos o colarinho vincado da camisa.

2 comentários:

  1. r: nunca tinha usado, mas gostei do resultado!
    Revi-me neste texto. É bom perdermo-nos com as pessoas, não é? Afinal, é assim que nos encontramos :)

    Beijinho *

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