A memória

- Eu contava-te a minha vida toda se a recordasse por inteiro, mas grande parte já não me pertence, a memória é uma coisa terrível, sabias? Come com gula as horas boas e más e quando já está de estômago cheio de sorrisos, entrega tudo às asas dos mochos para ser semeado numa planície distante, já imaginaste que algures nesta esfera de homens cresce uma plantação de existências abstractas, longe dos corpos e das mentes a que já não pertencem? Onde os guiões de tantos brotam da terra fértil para serem vividos uma última vez num auditório a céu aberto? Não temas, minha filha, os mochos não levam tudo, deixam recortes de película que ainda se movem em filme, tenho o colo da minha mãe no primeiro dia de escola, o primeiro beijo clandestino do teu avô, no canto inóspito do liceu igual ao que todos os liceus têm, os teus dedos pequeninos no dia em que o mundo te abraçou. Os mochos caçam-nos as repetições, mas deixam para trás os primeiros, são os que estão mais presos aos ossos, é preciso somar força e persistência. Escuta, vou contar-te um segredo, ainda tenho muitas histórias escondidas em sítios onde os ladrões não chegam, há muitas palavras que a minha pele tem. Mas nunca aprendi a ler rugas nem braile e os meus dedos já não lhes chegam, talvez um dia com os teus dedos pequeninos as soltes de onde se perderam. Talvez um dia nos tragas todas as histórias por ler.

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