A autópsia

Quem entrasse naquela sala diria que tinha experimentado outra era. Delicadamente, a mulher de meia idade vestiu a sua velha bata branca, cortina de algodão tingida de cansaço, e numa fracção de segundos, duas luvas de látex, as mais pequenas, as mais apuradas, gesto tão rotineiro como calçar os sapatos antes de sair de casa. Sobre a mesa de autópsias, um corpo mumificado, nu e indefeso aos olhos atentos da mulher, três mil anos de história ao alcance de um braço. Pegou no bisturi estendido na mesa de instrumentos e numa expiração demorada, como quem se prepara para um ritual de meditação, permitiu-se revelar os segredos escondidos naquele aglomerado de ossos e pele ressequida, vestígio de um corpo que outrora viveu, amou, sorriu e chorou, igual a si própria ou qualquer dos comuns mortais.

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